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2009-03-30

A Ficção Científica e o ‘Movimento Óculos Espelhados’

Há muito tempo já é consenso que prever o futuro, ou imaginá-lo, nunca foi a intenção da Literatura de Ficção Científica. Desde seus princípios, no século XIX, as histórias contadas por H.G. Wells (Guerra dos Mundos) e Jules Verne (Vinte mil léguas submarinas), eram metáforas de seu tempo, nesse caso, do otimismo da sociedade perante a possibilidade de atingir o progresso através da ciência, da tecnologia. Esse período foi nomeado, posteriormente, como Período Clássico.

Mas a Lua de Mel dos homens com a máquina não durou muito tempo, logo vieram as duas Guerras Mundiais e a tecnologia foi usada para matar e não para evoluir. Essa relação ambígua se refletiu na Ficção Científica, que entrou na chamada Era de Ouro, da qual fazem parte dois dos maiores autores do gênero, Isaac Asimov (Nós, Robôs) e Arthur C. Clarke (2001: Uma Odisséia no Espaço).

Nos anos 60, sob a influência Hippie, surge o mais diferente subgênero de Ficção Científica. Nomeado como New Wave, as ciências exatas deram lugar às ciências humanas, a tecnologia deu lugar a um retorno ao campo, e as viagens intergaláticas viraram viagens internas dentro da alma humana. De todos os gêneros de Ficção Científica, a New Wave foi o menos popular, talvez por não ser tradicional e ter se mantido no underground durante toda a sua existência. Os maiores autores dessa época foram descobertos anos depois, entre eles Brian Aldiss (Superbrinquedos duram o verão todo) e Philip K. Dick (Sonham os andróides com carneiros elétricos?).

A Ficção Científica perdeu espaço nos anos 70 e entrou num período de latência que duraria até a década seguinte, quando surgiu um grupo de jovens escritores (Bruce Sterling, William Gibson, Pat Cadgan, John Shirley e Rudy Rucker) que se auto-demoninou ‘O Movimento’. Eles negavam o otimismo da Período Clássico, aprofundavam a visão ambigüidade da ciência da Era de Ouro, abusavam dos experimentalismos estéticos e temáticos da New Wave, mas tudo com muita ironia, descrença e revolta típica da subcultura punk. Mais tarde, aliás, esse novo subgênero seria chamado de Cyberpunk.

Assim como todos anteriores, o Cyberpunk poderia, superficialmente, ser visto como uma previsão do futuro, mas era, na verdade, uma metáfora de sua própria época. Um dos temas mais tratados era a mistura do homem com a máquina. Os personagens são, muitas vezes, humanos com implantes tecnológicos que vão desde um braço mecânico até lentes oculares que funcionam como um mini-computador. Os computadores, aliás, já eram parte da realidade dos autores Cyberpunk e foram introduzidos nas histórias quase como protagonistas.

Mas não só dos avanços tecnológicos se alimentou o Cyberpunk, são freqüentes os personagens que sofrem com vícios em drogas (na maioria das vezes sintéticas e aceleradoras, não mais as alucinógenas da New Wave), além de doenças típicas do final do século XX, como depressão, diversos tipos de fobias e Síndrome do Pânico. Também foi ali que surgiu a primeira imagem da internet, ainda que o cyberspace de Neuromancer (William Gibson) esteja há anos luz do que temos hoje, a idéia de uma ‘alucinação coletiva virtual’, uma rede onde é possível encontrar e se comunicar com tudo e todos, onde são guardados todo tipo de dados e onde é possível ir para os mais diferentes lugares, é basicamente a mesma.

O ambiente também importantíssimo nas narrativas do gênero, normalmente as cidades são artificiais, pós-apocalípticas, cheias de mendigos, ladrões e caçadores de recompensas. O mundo cyberpunk é sinistro, gélido e assustador, e as fronteiras entre o real e o virtual nunca estão bem definidas.

Os heróis cyberpunk, aliás, andam longe do ‘Mito do Herói’, de Joseph Campbell, eles são, normalmente pessoas às margens da sociedade. Solitários, desprivilegiados, viciados, desertores, traidores, mas sempre se mostram como visionários espertos e talentosos procurando justiça ou vingança contra Multinacionais que tomaram o lugar do Estado e controlam a vida das pessoas. Normalmente a ação tomada por esses anti-heróis não atinge seu objetivo, já que a briga é entre uma formiga contra um T-Rex, e quando conseguem vencer, sua recompensa nunca é justa. O importante nas histórias cyberpunk não é o resultado, mas a tomada de ação. Uma batalha entre o excluído e o opressor totalitário. Esse espírito jovem de rebelião é o maior componente punk no gênero.

Talvez o Cyberpunk possa ser colocado como o gênero de Ficção Científica que mais influenciou a sociedade, o motivo pode ser porque, mais que literatura, ele se tornou uma subcultura. A fetichização da máquina mostrada em obras como Neuromancer fazem parte da nossa sociedade, um celular, um mp3 player, vai além de sua função original, se torna um objeto de desejo. Até mesmo a mistura entre o homem e a máquina, ainda que, por enquanto, não existam implantes capazes de nos conectar com a internet através da mente, são poucas as pessoas que nunca fizeram alguma modificação corporal, seja uma cirurgia estética ou um piercing. Na moda é ainda mais explicito, o uso de muito couro preto, óculos escuros espelhados, tecidos sintéticos, visuais futuristas noir, tudo isso apareceu pela primeira vez dos livros de Ficção Científica Cyberpunk.

Seja na imagem de hackers derrubando Megacooporações, de pessoas implantando chips no cérebro, de uma rede virtual infinita, o Cyberpunk se mantém atual até hoje. A cibercultura se tornou um assunto levado a sério, estudado e pesquisado, e promete continuar sendo, uma vez que a internet ainda é jovem e deve se transformar a medida que novas tecnologias forem inventadas. Quem sabe o nosso ciberespaço um dia não se torne tão inovador e avançado quanto o cyberspace do livro Neuromancer?

Pela definição de Bruce Sterling, um dos principais autores do gênero, “Qualquer coisa que se possa fazer a um rato se pode fazer a um humano. E podemos fazer quase qualquer coisa aos ratos. É duro pensar nisto, mas é a verdade. Isto não mudará com nós cobrindo os olhos. Isto é Cyberpunk.” Esse subgênero de Ficção Científica teve sua morte decretada com a chegada dos anos 90, não por esgotamento, mas porque o mundo se tornou Cyberpunk.

Não só experiências com ratos e humanos, ou mundos virtuais, ou implantes mecânicos, ou hackers, ou Multinacionais, ou óculos escuros espelhados. Mas também, somente as luzes da cidade à noite. Isto é Cyberpunk.

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